quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ouvir histórias, ler o mundo

"O mundo é um livro sem texto, criado a partir da palavra. Dizendo faça-se luz, a água, a terra, o caos se curou. Livro sem texto onde me vejo elaborando orações, apaziguando as imensas emoções percebidas nesse mar de linhas e horizontes de eternas leituras. Desde o início em que me lembro, leio ininterruptamente suas páginas, recorrendo a todos os meus sentidos, acrescentando ainda o fantasiado, na tentativa de me acalentar frente a tão imenso mistério. E sobre esse remoto livro sem texto -invenção original primeira- busco atribuir significado a tudo que ultrapassa o meu pouco poder. Freqüentemente, incapaz de decifrar os enigmas, recorro ao imaginário, resgatando elementos para me proteger diante de tamanha intensidade. E só a palavra me inscreve.
...Procurando adivinhar esse livro sem texto, eu escutava o conto de cada um para facilitar minha leitura. Cada história me trazia novos entendimentos e outras lembranças. Elas clareavam meus jovens pressupostos, me revelavam o sentido que cada um imprimia a essa viagem.
E muitos - avós, padrinhos, vizinhos- me ofereciam histórias. Em suas narrativas afetuosas eu descobria o contraditório, o medo, o desejo, o ódio, a insegurança, sentimentos comuns a todos nós, passageiros. Revelou-se para mim que contar histórias era, também para eles, colocar as dúvidas, temporariamente, em seus lugares. Isso nos aproximava. O contador se fazia ouvinte de si mesmo. E todos, com diferentes lápis e vários tons, legendavam as páginas do livro. Receoso quanto ao futuro, incerto sobre o antes, eu ia atravessando os fantasmas na medida em que a linguagem tornava inteligível a lição.
...
As palavras me roubavam o sono e construíam os sonhos, me aproximavam das perdas ou inauguravam os meus lutos. E meu cuidado para com elas, era tanto, que o silêncio passou a ser o lugar onde todas dormiam. Para acordá-las era preciso muita cautela.
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As histórias me aproximaram das palavras escritas. Saber ler passou a ser ganhar ou abrir portas, encontrar novos alicerces, desequilibrar o sabido, desconfiar da permanência. Ler era o que de melhor eu podia fazer por mim. Ler, não para saber, mas pelo prazer de receber notícias de outras inquietações.
Se visito o passado, não sei se as dúvidas das crianças de hoje são outras. Às vezes, sou levado a perceber que o mistério do nascimento e da morte, com suas inquietações intermediárias persistem. Vejo então, como indispensável, tomar uma criança no colo e dizer da fragilidade da viagem, lançando mão do mais eficaz dos métodos: deixar a fantasia ler o mundo e legendá-lo, então, afetivamente.

(Bartolomeu Campos Queirós, Ouvir histórias, ler o mundo)

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