sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Falcão e o Cálice

Certa manhã, o guerreiro mongol Gengis Khan e sua corte saíram para caçar. Enquanto seus companheiros levavam flechas e arcos, Gengis Khan carregava seu falcão favorito no braço - que era melhor e mais preciso que qualquer flecha, porque podia subir aos céus e ver tudo aquilo que o ser humano não consegue ver.

Entretanto, apesar de todo o entusiasmo do grupo, não conseguiram encontrar nada. Decepcionado, Gengis Khan voltou para seu acampamento - mas, para não descarregar sua frustração em seus companheiros, separou-se da comitiva e resolveu caminhar sozinho.

Tinham permanecido na floresta mais tempo que o esperado e Khan estava morto de cansaço e de sede. Por causa do calor do verão, os riachos estavam secos, não conseguia encontrar nada para beber até que - milagre! - viu um fio de água descendo de um rochedo a sua frente.

Na mesma hora, retirou o falcão do seu braço, pegou o pequeno cálice de prata que sempre carregava consigo, demorou um longo tempo para enchê-lo e, quando estava prestes a levá-lo aos lábios, o falcão levantou vôo e arrancou o copo de suas mãos, atirando-o longe.

Gengis Khan ficou furioso, mas era seu animal favorito, talvez estivesse também com sede. Apanhou o cálice, limpou a poeira e tornou a enchê-lo. Com o copo pela metade, o falcão de novo atacou-o, derramando o líquido.

Gengis Khan adorava seu animal, mas sabia que não podia deixar-se desrespeitar em nenhuma circunstância, já que alguém podia estar assistindo à cena de longe e mais tarde contaria aos seus guerreiros que o grande conquistador era incapaz de domar uma simples ave.

Desta vez, tirou a espada da cintura, pegou o cálice, recomeçou a enchê-lo - mantendo um olho na fonte e outro no falcão. Assim que viu ter água suficiente e quando estava pronto para beber, o falcão de novo levantou vôo e veio em sua direção. Khan, em um golpe certeiro, atravessou o seu peito.

Mas o fio de água havia secado. Decidido a beber de qualquer maneira, subiu o rochedo em busca da fonte. Para sua surpresa, havia realmente uma poça d‘água e, no meio dela, morta, uma das serpentes mais venenosas da região. Se tivesse bebida a água, já não estaria mais no mundo dos vivos.

Khan voltou ao acampamento com o falcão morto em seus braços. Mandou fazer uma reprodução em ouro da ave e gravou em uma das asas:

“Mesmo quando um amigo faz algo que você não gosta, ele continua sendo seu amigo”.

Na outra asa, mandou escrever:

“Qualquer ação motivada pela fúria é uma ação condenada ao fracasso”.

[da tradição oral, em O Livro das Virtudes para Crianças, postado em www.academia.org.br]. Foto: museu do louvre, representação do deus-falcão Hórus, divindade do antigo Egito. o olho de Hórus significa proteção e poder.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Velho e o Neto

Era uma vez um velho muito velho, quase cego e surdo, com os joelhos tremendo. Quando se sentava à mesa
para comer, mal conseguia segurar a colher. Derramava sopa na toalha e, quando, afinal, acertava a boca,deixava sempre cair um bocado pelos cantos.
O filho e a nora dele achavam que era uma porcaria e ficavam com nojo. Finalmente, acabaram fazendo o velho se sentar num canto atrás do fogão. Levavam comida para ele numa tigela de barro e - o que era pior - nem lhe davam bastante.

O velho olhava para a mesa com os olhos compridos, muitas vezes cheios de lágrimas.
Um dia, suas mãos tremeram tanto que ele deixou a tigela cair no chão e ela se quebrou.

A mulher ralhou com ele, que não disse nada, só suspirou.
Depois ela comprou uma gamela de madeira bem baratinha e era aí que ele tinha que comer.

Um dia, quando estavam todos sentados na cozinha, o neto do velho, que era um menino de oito anos, estava brincando com uns pedaços de pau.
- O que é que você está fazendo? - perguntou o pai.
O menino respondeu:
- Estou fazendo um cocho, para papai e mamãe poderem comer quando eu crescer.

O marido e a mulher se olharam durante algum tempo e caíram no choro. Depois disso, trouxeram o avô de volta para a mesa. Desde então passaram a comer todos juntos e, mesmo quando o velho derramava alguma coisa, ninguém dizia nada.

[Irmãos Grimm
Tradução Ana Maria Machado
ilustração: Norman Rockwell]

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Que o Outro

“Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dóia idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco - em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo ”Olha que estou tendo muita paciência com você!”

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.“

[de Lya Luft,
ilustração: Eric Haddad]