quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Terra dos Homens

“Levantei-me. Pela uma da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os vagões- dormitório estavam vazios. Os vagões de primeira classe estavam vazios. Mas os vagões de terceira classe estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos da França, que voltavam para a sua Polônia.
Caminhei pelo centro do carro, levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé, sob a lâmpada do carro, contemplei naquele vagão sem divisões, que parecia um quarto gigantesco, que cheirava à caserna e à delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para a sua miséria.
(...) assim, eles me pareciam ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas (...)
Uma criança chupava o seio de sua mãe que, de tão cansada, parecia dormir. A vida, transmitia-se assim, no absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei para o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. (...) Aquele homem parecia um monte de barro.
E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. O mistério está nisso: eles terem se tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens? Um animal, ao envelhecer, conserva a sua graça. Por que a bela argila humana se estraga assim?
(...) Sento-me diante de um outro casal. Entre o homem e a mulher, a criança se havia alojado, e dormia. Voltou-se porém, no sono. E seu rosto me apareceu sob a luz da lâmpada.
Ah, que lindo rosto!
Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais – pensei – havia nascido um prodígio de graça e encanto.
Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico! Eis Mozart, criança! Eis uma bela promessa de vida!
Não são diferentes dessa criança, os belos príncipes das lendas!
Se protegido, educado, cultivado, que não seria ela? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma nova rosa, os jardineiros se alvoroçam: a rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Para que possa se desenvolver e desabrochar.
Mas, não há jardineiros para os homens .... ”.

[Saint Exupéry]
> seleção feita por André Rivola, para a apresentação do grupo Conto a Conto, em Cotaçao 2.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

O Homem que Amava Caixas

Era uma vez um homem
O homem tinha um filho
O filho amava o homem
e o homem amava caixas.

Caixas grandes
caixas redondas
caixas pequenas
caixas altas
todos os tipos de caixas!

O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava;
então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho.
Ele era perito em fazer castelos
e seus aviões sempre voavam...
a não ser, claro, que chovesse.

As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam...
e brincavam...
e brincavam.

A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho.
Os velhos apontavam para ele.
As velhas olhavam zangadas para ele.
Seus vizinhos riam dele pelas costas.

Mas nada disso preocupava o homem,
porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de compartilharem...
o amor de um pelo outro.

[livro de Stephen Michael King, da Brinquebook]

Meninos e Meninas, eu li:

SMK é desse autores que a gente pode ler toda a obra sem receio de errar. Um ilustrador delicado e autor atento. Seus textos e desenhos são pura poesia. Esse é um poema. Para adultos e crianças de todas as idades, fala da qualidade das relações, hoje no pouco tempo que nos sobra entre tantos brinquedos digitais, inclusive esse onde nos conectamos. Há conexão mas afeto é raro. No livro o afeto se dá na ação, no fazer junto. Não esta em palavras, não há dialogo formal entre os personagens. Mas dialogam através de caixas... daquele objeto que seria o que encaixota, que esconde, que protege, que embala, que envia, que guarda... crianças gostam de caixas, fato. Como Calvin que prefere as caixas ao conteúdo que guardam. Gente grande que guarda a criança também gostam de caixas.. conheço várias. Talvez porque contém todas as possibilidades - podem ser uma casa, um carrinho, um berço, um transmutador celular... Caixas são lúdicas. São brinquedos em essência - não prontos, mas a serem criados, realizados, construídos. e podem ser tudo, tudo que a imaginação quiser. O dia que a industria de brinquedos perceber isso e os adultos também, talvez seja a falência da primeira e o dialogo geral do segundo.  [por Lux]

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Histórias para o rei

Nunca podia imaginar que fosse tão agradável a função de contar histórias, para a qual fui nomeado por decreto do Rei. A nomeação colheu-me de surpresa, pois jamais exercitara dotes de imaginação, e até me exprimo com certa dificuldade verbal. Mas bastou que o Rei confiasse em mim para que as histórias me jorrassem da boca à maneira de água corrente. Nem carecia inventá-las. Inventavam-se a si mesmas.
Este prazer durou seis meses. Um dia, a Rainha foi falar ao Rei que eu estava exagerando. Contava tantas histórias que não havia tempo para apreciá-las, e mesmo para ouvi-las. O Rei, que julgava minha facúndia uma qualidade, passou a considerá-la defeito, e ordenou que eu só contasse meia história por dia, e descansasse aos domingos. Fiquei triste, pois não sabia inventar meia história. Minha insuficiência desagradou, e fui substituído por um mudo, que narra por meio de sinais, e arranca os maiores aplausos.

[de Carlos Drummond de Andrade, em Contos Plausíveis]

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

[de Caio Fernando Abreu]
(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986) - do site Releituras.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Felicidade Clandestina


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com sua letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingan­ça, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de ca­belos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me subme­tia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía as Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro pra se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente cor­rendo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife. Dessa vez nem cai: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nem uma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefini­do, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivi­nhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mes­mo, às vezes eu aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas, houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A se­nhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sem­pre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só pra depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.

[em Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, da Rocco]


Meninos e Meninas, eu li:
O livro é de contos, de Clarice. Fechamos a dica porque não carece dizer mais nada. Mas dizemos porque para isso estamos aqui. Então, podemos acrescentar, se é que realmente fará diferença, que o livro é uma delicia. Os contos, os temas, a abordagem, a linguagem ou seja lá como classifiquemos a forma de Clarice nos falar sobre coisas tão intimas e profundas a partir de coisas simples e cotidianas, memórias e qualquer coisa. Leia, durma com ele, não acredite que entendeu tudo na primeira lida! Atenção! Muita atenção. É preciso conviver, reler, viver, ler de novo, ser delicada feito a menina rainha Clarice. E, então, talvez, depois de uma vida inteira ou um lapso de segundo, ser feliz, voce e seu amante, clandestinamente. Bom êxtase!

domingo, 11 de novembro de 2007

Meu Ideal Seria Escrever...

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

(de Rubem Braga, em "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967)

>>>> para Évora Giffoni e todos aqueles que sonham e acreditam no poder das histórias na transformação da realidade!

terça-feira, 6 de novembro de 2007

O Eclipse

"...
Surgiu, então, a Lua, debruçada em sua janela. E, vendo que lá não mais estavam aqueles versos que pranteara na noite anterior, perguntou:
- Onde estão as contas de meu colar de tristeza?
- Recolheu-as um sujeito que, embora de brilho intenso, tem por guia uma solidão cega. Sorveu tuas palavras com paixão e ama-te sem jamais te ter visto. Foi por ali, seguindo teus passos.

E a Lua esperançosa seguiu na mesma direção. Assim iam levando suas vidas desencontradas.
Cansado daquela busca infinda, o Sol foi bater à porta da casa do Destino, que era astrólogo, tarólogo, quiromante, jogava búzios e também era médico traumatologista. Garantiu-lhe o adivinho que em breve o moço encontraria sua amada: - Como tu a imaginas?
- A dona de tais versos tem a face radiante, longos cabelos negros que ela escova mirando-se num pacífico espelho, por sua beleza encantado. Sobre esse espelho, quantas caravelas não terão se perdido de paixão, perseguindo sua miragem! Ao vê-la, brilhante como a imagino, sentirei esse fogo que queima diverso, consumindo o tempo, as palavras e a razão. estarei mudo esperando que me banhe com sua luz e beleza, enquanto me toca com seus lábios quentes, de onde brotaram todos aqueles versos líquidos que sorvi com avidez.
Por sua vez, cansada de sua busca, a Lua também veio à porta do Destino, com voz de cigana.
- Só pode ser o meu senhor, esse desconhecido que rouba de mim cada um de meus pensamentos. Ah, e por esse inocente furto espero que o condenem a ser prisioneiro perpétuo de meu coração. Revela-me, por favor, como é esse que amo sem jamais tê-lo visto! - Dize-me tu - solicitou o Destino.
- Com certeza é moço de olhos mortiços, tímidos e romântico. Quem mais se ocuparia de colher versos que espalho com desesperança pelo caminho? Eu o reconhecerei pelos seus modos, sua aura silenciosa, pelo toque cálido de seus dedos em meus ombros, o que trará, num arrepio impudico, a certeza de que o amor chegou.
Cumpriu-se a previsão dos búzios e do tarô. Numa rua qualquer, passaram um pelo outro. Mas não viu nela, o Sol, senão palidez e uma tristeza que se projetava como sombra. Não, não seria aquela a senhora de suas quimeras. Por sua vez, a Lua, incomodada, deu as costas àquele que passava, senhor de uma vaidade que cegava.
Hoje, nenhum deles acredita mais em búzios, em tarô e no Destino."

[fábulas do amor distante, Marco Túlio Costa]

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A Poesia e os Corações Perdidos

"Ele jamais amara alguém. Mas, incompreensivelmente, havia nele um coração que estava sempre na maré alta, e que fustigava seu peito com as ondas espumantes de suas paixões.
Descobriu, por acaso, entre uma janela noturna, o solilóquio de uma televisão e um copo solitário, que as ondas do coração amansavam-se, quando se espalhavam nas brancas praias de papel sulfite.
Para aquietar o espírito ensandecido, escreveu todos os versos que lhe vieram à mente, como calhaus de um naufrágio. E, diante daquelas palavras absurdas, sem sentido como as tragédias, sem endereço como o acaso, experimentou a sensação fugaz da salvação.
Assim, vinha até a sua praia desafiadora todas as noites, admirar suas ondas dialéticas quebrarem-se contra rochedos de dúvidas, arrastar os estranhos moluscos de seus segredos, revelar em redes o dorso luzidio de cardumes de sonhos. O poeta assistia, atônito, à noite de grafite revelar-se que tudo era espuma e um eterno ir-e-vir.
Em algumas semanas, tinha a sensação de um degredado, que já fora abandonado em todas as praias do mundo. E o mesmo navio que o trazia até seu lugar de desterro levava consigo sua esperança de salvação definitiva, como se em suas velas estivesse escrita a sentença:
- Em mim está o objeto de tua paixão. O que procuras ávido é aquilo mesmo que te condena à incessante busca.
Disseram-lhe, certa vez, que as razões do coração fazem tanto sentido quanto um discurso de um louco chinês a um canário belga. E a razão não só desconhece, como também não faz nenhuma questão de ocupar-se do assunto.
Assim, restava-lhe saber, então, por que escrever nas areias da praia tornara-se para ele tão imprescindível, se as ondas de sua confusão interior misturavam suas palavras com seus dedos líquidos implacáveis.
Certo dia, indo de ônibus para o trabalho, esqueceu sobre o banco o seu pacote de versos.
Alguém o encontrou, sem desconfiar que um homem naquele instante caminhava atormentado por praias brancas incongruentes, procurando suas palavras perdidas.
Leu os poemas com paixão. E isso quer dizer que os leu de pé sobre um rochedo, onde se quebram as ondas do coração. E por conta desse tormento, esqueceu também o volume de versos no banco de um ônibus.
Outra pessoa encontrou o livro e depois outra, outra, outra.
Numa noite, entre a janela aberta para um mundo solitário, as pálpebras cerradas de uma tevê e um copo vazio, nas praias de um sulfite branco, o poeta deparou-se com as esculturas de areia de todos os habitantes do mundo. "

[em Fábulas do amor distante, de Marco Túlio Costa]

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ouvir histórias, ler o mundo

"O mundo é um livro sem texto, criado a partir da palavra. Dizendo faça-se luz, a água, a terra, o caos se curou. Livro sem texto onde me vejo elaborando orações, apaziguando as imensas emoções percebidas nesse mar de linhas e horizontes de eternas leituras. Desde o início em que me lembro, leio ininterruptamente suas páginas, recorrendo a todos os meus sentidos, acrescentando ainda o fantasiado, na tentativa de me acalentar frente a tão imenso mistério. E sobre esse remoto livro sem texto -invenção original primeira- busco atribuir significado a tudo que ultrapassa o meu pouco poder. Freqüentemente, incapaz de decifrar os enigmas, recorro ao imaginário, resgatando elementos para me proteger diante de tamanha intensidade. E só a palavra me inscreve.
...Procurando adivinhar esse livro sem texto, eu escutava o conto de cada um para facilitar minha leitura. Cada história me trazia novos entendimentos e outras lembranças. Elas clareavam meus jovens pressupostos, me revelavam o sentido que cada um imprimia a essa viagem.
E muitos - avós, padrinhos, vizinhos- me ofereciam histórias. Em suas narrativas afetuosas eu descobria o contraditório, o medo, o desejo, o ódio, a insegurança, sentimentos comuns a todos nós, passageiros. Revelou-se para mim que contar histórias era, também para eles, colocar as dúvidas, temporariamente, em seus lugares. Isso nos aproximava. O contador se fazia ouvinte de si mesmo. E todos, com diferentes lápis e vários tons, legendavam as páginas do livro. Receoso quanto ao futuro, incerto sobre o antes, eu ia atravessando os fantasmas na medida em que a linguagem tornava inteligível a lição.
...
As palavras me roubavam o sono e construíam os sonhos, me aproximavam das perdas ou inauguravam os meus lutos. E meu cuidado para com elas, era tanto, que o silêncio passou a ser o lugar onde todas dormiam. Para acordá-las era preciso muita cautela.
...
As histórias me aproximaram das palavras escritas. Saber ler passou a ser ganhar ou abrir portas, encontrar novos alicerces, desequilibrar o sabido, desconfiar da permanência. Ler era o que de melhor eu podia fazer por mim. Ler, não para saber, mas pelo prazer de receber notícias de outras inquietações.
Se visito o passado, não sei se as dúvidas das crianças de hoje são outras. Às vezes, sou levado a perceber que o mistério do nascimento e da morte, com suas inquietações intermediárias persistem. Vejo então, como indispensável, tomar uma criança no colo e dizer da fragilidade da viagem, lançando mão do mais eficaz dos métodos: deixar a fantasia ler o mundo e legendá-lo, então, afetivamente.

(Bartolomeu Campos Queirós, Ouvir histórias, ler o mundo)